Do exumador de deuses
resenha de ruhan sturare sobre o romance "prisões de guarani"
Contemplando pelo prisma não atento, Prisões de Guarani não parecerá uma obra de um calibre tão alto. Na hipótese de encararmos, assim, de forma principalmente superficial, concordaria sem pestanejar. No entanto, eu possuo uma única objeção: Prisões estreia como quem nada ambiciona - sem nunca afastar a presença primorosa em sua narrativa. Daí, o calibre se torna realmente pequeno, sim, mas é tal qual uma flecha homérica: fina, no entanto comprida e certeira, atravessando a alma de quem tiver o peito aberto para recebê-la.
Prisões de Guarani nos conta a história de jovens brasileiros que findam encontrando casualmente poderes dentro de si que, por sua vez, provam-se ser deuses ancestrais guaranis aprisionados. Estes, sem liberdade pelos antigos povos indígenas de há muito, encontram-se coléricos não só pela traição de seu povo, porém também pelos invasores europeus advindos de quinhentos anos atrás, que traziam nas barcas novos deuses e novas culturas, subjugando a regente. Assim, a obra se cria em uma fantasia urbana emoldurada pelos cenários litorais do nordeste do país, representando personalidades burgueses com grandes fortunas no bolso. Embora exista o nítido confronto entre mitologias[1] (Cristã X Guarani), não há patriotismo exacerbado, xenofobia (ou outro tipo de preconceito) e subjugação presentes na obra. Na verdade, eu costumo acreditar que Fernandes fez é um favor ao leitor, como afirmarei mais para frente.
A primeira análise que faço, e que é o parâmetro sublime do livro, é a narrativa. O narrador de fato é um narrador simples: em terceira pessoa, onipresente, onisciente... Nem quero salientar aquilo que se narra, porém sim como que é narrado. Aqui, William me venceu. A narrativa é, com toda a certeza do mundo, homérica: assim como Homero sustentava boa parte de suas comparações, metáforas e descrições nos deuses gregos, William se sustentou nos deuses guaranis de forma zelosa. À sério, o seu potencial artístico para nos descrever cenários e ambientes brasileiros é de um ufanismo poético que até José de Alencar ergueria uma das sobrancelhas os lendo. E melhor: as cenas de luta (bem coreografadas) e as cenas com muita magia e fantasia (que são de difíceis descrições) conseguem, novamente, despertar o espírito homérico (e até dantesco) que William encerra em sua intelectualidade. Tudo isso é sutil, pois é um trabalho prosaico contemporâneo e descomplexo. Sem dúvida, não só apraz os saudosistas acadêmicos como eu, como também os que não buscam um livro para quebrar a cabeça. Estas características manifestam que o William quer mudança, quer o novo e quer ousar, mas que não se permitem só olhar para frente. Esteticamente, William tem uma base narrativa poderosa e sólida.
O uso dos deuses para adornar cenários e eventos é de uma capacidade intelectual presente em grandes escritores e poetas, pois é uma metáfora útil e que contorna o ordinário. Se, por exemplo, um poeta grego pode muito bem usar-se de uma sentença como “as convulsões de Netuno” para representar o ondular da maré, William, em seu texto, usa-se de Tupã, Jaci, Angra, Iara e entre outros muitos para decorar sua narrativa e os episódios da natureza. Revivendo a mitologia olvidada e morta, torna-se um exumador da cripta dos deuses.
Contudo, nem tudo que reluz é ouro: profiro isso pois nem tudo foi capaz de me agradar muito bem. À exemplo, sublinho uma cena que forcejou ser erótica, no entanto findou sendo vulgar; e só pode ser escudada por possuir uma justificativa para existir. O autor seguramente desejou explicitar o amadurecimento de uma das personagens em meio a história, depois de anos sem aparecer. Ele achou harmonioso, portanto, inserir uma cena de sexo (o que é um nítido signo de desenvolvimento); embora velada por frases semelhantes à: “cavalgou nele como se estivesse na estrada a caminho do gozo”, ainda não me convenceu de um erotismo agradável[2]. Não é vulgar como qualquer ocorrência do modelo em As Crônicas de Gelo e Fogo, porém também não chega ao erótico como José de Alencar fez em Lucíola. Falo isso, mas o livro não é sustentado em orgia, sexo, etc. Literalmente, no livro inteiro, está foi a única cena de desagrado quanto às capacidades narrativas, erro bem comum nas obras contemporâneas.
As personagens são abismos de características e de sentimentos heterogêneos e harmoniosos. Cada ser toma seu próprio objetivo, possui suas convicções e a aventura os obriga a tomar escolhas cabíveis às suas próprias necessidades e opiniões. Assim, as entidades presentes, deuses ou mortais, recebem uma condição essencial de verossimilhança, pois são vivos, marcantes e ativos. O livro, a fim de reforçar ainda mais as diferenças pessoais de cada personagem, reparte-se em capítulos que, por sua vez, destacam no romance um destes personagem. Depois da narrativa, esse é o grande fator de qualidade do livro. O mais interessante, ao meu ver, é que William sempre traz a ideia de que nada é tão só bom ou vil: assim como pode haver razão na maldade, pode haver imparcialidade e ruindade no lado bom da trama. E a concepção de todos serem espécies de vítimas – sobretudo as próprias entidades dos deuses (que personificam o ódio) as são -, constituem uma obra madura e completa.
O enredo é monumental pelo grande volume de personagens principais, que são tão bem desenvolvidos que dificultam conhecer quem é o protagonista. A história é estimulante pelos mistérios que encerra, o seu pano de fundo é engenhoso por conta dos deuses não convencionais, as personagens são inquietas, legítimas e se costuram no romance, obstruindo-se e se ajudando; mas possui alguns furos. Aristóteles disse (ou mais ou menos disse assim) em Poética que “uma narrativa tem de ser verossímil com o real”, ou seja, ser semelhante à realidade. Como o livro de William é uma fantasia, ele precisa ser verossímil à sua própria realidade; isto é, tem de ser verificável e correto em si mesmo. Quando se desenvolve universos fantásticos, instintivamente desenvolvemos leis cósmicas para resguardar, defender e sustentar acontecimentos na ficção. O livro nos frustra às vezes por quebrar as próprias leis. Um exemplo simples: uma personagem possui uma arma X capaz de matar pessoa Z, e só isso nos é acessível através do romance. Daí, a personagem usa arma X em Z; por silogismo, Z morre. Mas só depois é manifestado ao leitor que a arma X só mata Z em condição Y. Quando chegou à condição Y, a personagem usou a arma X na pessoa Z, e na hora é discursando que a personagem necessita acertar N coisa durante Y para que, com efeito, a arma X mate pessoa Z.
Constatar todas estas regras na hora é bem frustrante, visto que é conjecturado que William possuía pena de matar os personagens e fortalecer os antagonistas.
Os antagonistas, ademais, em todo o enredo, não conseguem nenhuma vitória significativa capaz de minguar verdadeiramente as forças dos protagonistas; embora tentem, nunca soa como um vigor de fato capaz de possibilitar uma vitória. É, sem dúvida, uma grande qualidade do antagonismo: são determinados por suas crenças, sendo insistentes e guiados pela irracional vingança, reiterando mais uma característica nas personagens. É uma virtude que agrada demais: mesmo sabendo que as chances de vitória eram poucas, pelo já muito fracasso de antes, eles agarram-se à batalha com todo o vigor do mundo pois sabem que aquele é o único jeito. Novamente, são personagens vivas.
Tornando a Aristóteles, ainda vemos coisas inverossímeis lá pro final da história. Uma indústria aparentemente milionária vazia e sem guarita num dia de sábado, soluções simples por conta da fortuna das personagens, policiais impotentes, mortes que não foram questionadas por ninguém que as descobriu, personagem que em nenhum momento apresentou-se grande lutador e que está num confronto equilibrado com aquele que, como foi demonstrado, era um grande pugnador... Tudo poderia ocorrer assim, sim: mas o livro carece de um pouco mais de cuidado e detalhe nas cenas para que de fato conversem com a realidade.
Também há repetição de pequenos acontecimentos lá no início do livro, como: vários caras dando em cima de uma moça para reforçar que ela é mais tranquila e controlada em relação à relacionamentos. Acaba repetitivo e inútil pelo número de ocorrências semelhantes.
No principal, reafirmo que o enredo é magistral. As personagens que o constituem são boas, tornando as cenas e a trama sublimes. A narração de uma personagem se torna mais uma linha na imensa teia de aranha que William vai avolumando conforme a história prossegue, dialogando-se entre si. Fora essas poucas resvaladas (que não constituem nem 5% deste livro), o livro tem uma criação rígida das histórias que William traz: tudo é feito com zelo e primor. Junta à sua capacidade artística narrativa, o romance é fluído como água e com tão poucos furos que estes contratempos que citei, embora simples, desagradam por serem os únicos.
Em conclusão, Prisões de Guarani vence pela narrativa, pelo cenário, pelos personagens e pelo enredo (ou seja, por tudo!). O enredo, por sua vez, é pouco deficiente em alguns pontos de verossimilhança e mimeses, conceito básico dos estudos sobre literatura e arte de Aristóteles, mas que de forma alguma o configura execrável. É um texto complexo e difícil de manejar, e que valeria um novo olhar atento do autor numa nova edição.
É uma história que o mundo pode precisar conhecer.
[1] O termo mitologia foi usado para colocá-los em pé de igualdade para fins acadêmicos. Nenhuma crença aqui é melhor, maior, ou mais real.
[2] Reitero a subjetividade. Não me agradou.